Democracia ameaçada pela escola

“A escola, ao propalar valores desejáveis mas agindo de forma pouco democrática, pode estar ensinando mais pelas atitudes do que pelos discursos. A violência parece estar internalizada nas práticas escolares, o que aponta para a necessidade de se buscar novos quadros de atuação para que o aluno possa (re)inventar sua prática”. Essa idéia está presente num estudo realizado com 36 alunos de duas escolas públicas e uma particular da cidade de São Paulo. O objetivo do trabalho foi examinar a ética como Tema Transversal, conforme a formulação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) propostos pelo Ministério da Educação, que sugere uma prática pedagógica com alguns princípios básicos de convivência democrática como a justiça, a solidariedade, o respeito mútuo e o diálogo.

Segundo a pesquisadora Maria Alice Pereira Augusto, autora do estudo, a “ética deve ultrapassar o âmbito do currículo para se tornar o cerne do convívio escolar”. Para tanto, os valores democráticos devem fazer parte das “personalidades em formação” e, consequentemente, da sociedade em que os alunos atuarão como cidadãos. No entanto, percebeu-se junto aos estudantes que a autoridade está presente nas práticas escolares e que isso não promove os valores da convivência democrática, muito menos uma conquista da autonomia, proporcionando “a desigualdade e a desvalorização de si, incapacitando a apropriação do cotidiano e o desenvolvimento moral”. “A escola, para muitos, torna-se um fardo: é obrigatória e estéril, ou pior, causadora de constrangimento e de baixa auto-estima”, explica a pesquisadora.

Verificou-se também uma diferença de postura entre os alunos da escola particular e da pública. “Os alunos da escola particular respeitam a autoridade e acreditam nela, mas quando se vêem prejudicados, não hesitam em reclamar seus direitos. E não vemos isso na escola da periferia”, salienta Pereira Augusto em seu texto, esclarecendo que o aluno dessa escola não busca seus direitos como se fosse uma “missão perdida”, pois “parece habituado a abrir mão de si”.

Sobre direitos e deveres, por exemplo, a pesquisadora percebeu maior intensidade do primeiro. “Todos concluíram que seria um direito reclamar e não um dever”, salienta. Segundo seu estudo, os alunos afastam o dever, considerado um sentimento negativo. Seria uma espécie de “forma indolor de convívio”, ou seja, não há grande esforço no trato com o outro, com a escola e com a sociedade.

No entendimento da pesquisadora sobre direitos e deveres, seu argumento explicita uma realidade escolar cada vez mais presente em toda a sociedade: “Há a tendência ao individualismo e o declínio da responsabilidade pública resultando em valores que não contradigam ao interesse pessoal, íntimo. Dessa forma, existe uma observância maior em relação aos direitos e um afastamento do dever que, geralmente, não traz uma felicidade pessoal imediata”.

As causas desse afastamento do dever poderiam estar em algumas normas que foram instituídas como uma jurisprudência própria e que não estariam relacionadas ao processo educativo, sendo arbitrariamente impostas aos alunos, inclusive com punições quando ocorre a quebra de uma das regras. Poderíamos dizer, com base no estudo, que há um excesso de deveres sem nenhuma vantagem. “Quando percebem o assalto de seus direitos, reagem de forma a recorrer a alguém que possa socorrer-lhe ou procuram exigir que seu direito seja reconhecido, ou ainda sucumbem à coerção”, afirma a pesquisadora. Ela compreende que, quando a “justiça torna-se parte da rotina escolar, atos contrários a ela serão observados e repudiados”. Isso porque sem justiça não há possibilidade de sociedade, embora a pesquisa também reconheça que “um ambiente em que as ações são pautadas em princípios como da justiça não garante que todas as situações de conflito estejam referenciados nela”.

Outro aspecto abordado pelo trabalho de Maria Alice Pereira Augusto foi o da competição. Para ela, fundamentada em sua pesquisa, as três escolas atuam com uma prática cotidiana pautada na competição. Em função dessa escolha, são freqüentes “atitudes de agressão entre os concorrentes”. “É fato que ninguém quer ser o perdedor, e quando isso ocorre há formas de reação que vão do xingamento à agressão física”, explica. Uma solução, segundo a pesquisadora, estaria em outras formas de convívio escolar como a democracia. “Se a escola propiciasse formas de convívio mais democráticas e se as pessoas se sentissem respeitadas nela, a prática da cooperação estaria presente, construindo um respeito aos demais, além do auto-respeito.”

Um dos objetivos da escola é o da formação do cidadão crítico e participativo. Em função disso, o diálogo, também abordado nos temas transversais, foi examinado pela pesquisadora: “Não é possível pensar em participar das decisões da vida pública que não seja por meio do diálogo. O diálogo é a troca entre iguais (e também diferentes), segundo a qual os pensamentos são expostos e ampliados ao mesmo tempo que se responsabilizam pelas decisões coletivas”. Assim, como valor democrático, o diálogo precisaria, segundo o estudo, “ser construído na prática cotidiana, e por isso deve nortear a ação educativa”. Na prática, por exemplo, os alunos deveriam ser informados sobre todas as regras e suas formas de funcionamento. Em função disso, teriam condições de “escolher assumi-los ou responsabilizar-se por sua mudança”. “Para que isso ocorra, é preciso haver uma sistematização de interesses e a participação responsável na elaboração ou conscientização do funcionamento escolar, em que cada uma das instâncias saiba ouvir e falar, e as decisões coletivas sejam acatadas e desejadas.”

Apesar da importância do diálogo na vida democrática, segundo o estudo da pesquisadora, “freqüentemente o diálogo é desacreditado como forma de resolução de conflitos, e a palavra do outro não é considerada”. O monólogo prevalece sobre o diálogo e, consequentemente, a dignidade e o respeito ao outro perdem espaço para a injustiça.

“A ética como tema transversal: um estudo sobre valores democráticos na escola”, dissertação de mestrado de Maria Alice Pereira Augusto. Orientação de Julio Groppa Aquino. Defesa em maio de 2001, na Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo).

COMO CITAR ESTE CONTEÚDO:
MENEZES, E. T. Democracia ameaçada pela escola. EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 2002. Disponível em <https://educabrasil.com.br/democracia-ameacada-pela-escola/>. Acesso em 29 mar. 2024.

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