O texto literário e o papel do professor

O jovem lê bastante. Só não lê o que o professor quer. A constatação é da pesquisadora Maria Inês Batista Campos, que lançou o livro Ensinar o prazer de ler. Para ela, os educadores precisam considerar o horizonte de expectativa do aluno para estabelecerem um diálogo com ele. Formada em Letras e Filosofia, Campos realizou mestrado em Língua Portuguesa, que deu origem ao livro lançado pela Olho d”Água. Atualmente, desenvolve doutorado, com bolsa do CNPq, em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem na PUC-SP. Confira, nesta entrevista, como o professor pode iniciar o aluno na literatura e qual a importância do texto literário, da leitura do cotidiano, do papel do professor e da família:

EducaBrasil – É possível ensinar o prazer de ler?
Maria Inês Batista Campos – Eu diria que é possível ensinar aquilo que você acha que é a leitura. Ninguém ensina aquilo que não faz. Eu digo que só pode ensinar a ler quem lê. A gente ensina sim, mas se a gente gostar muito da leitura. Isso é um pré-requisito.

EducaBrasil – Então o pré-requisito seria ter esse prazer de ler para poder ensinar?
Campos – Sim. Ser uma pessoa que tenha um repertório de leitura que contemple não só aqueles textos que a crítica canonizou. Ele tem que ser um leitor da vida cotidiana, que quando levanta pela manhã está habituado a ler jornal, a ler revistas, revistas de cultura, a Cult, a República. Ele está lendo o que está no mundo. Não existe leitura de texto literário que não passe pela leitura do mundo, do cotidiano. O que é a boa literatura? É aquela que está impregnada do cotidiano, que se reelabora em linguagem, que tem por objetivo trabalhar a linguagem, com as questões do homem. O que faz o Machado ser bom hoje? As questões humanas estão lá.

EducaBrasil – O que seria esse prazer de leitura? Que definição teria?
Campos – É preciso fazer algumas distinções. A primeira: não estou falando de um gosto como chupar sorvete. Não é um gostar tipo Playcenter. Estou falando de um gosto de interação. Uma coisa é o prazer hedonista. Eu falo do prazer estético, aquele que põe a pessoa numa interação. Porque, na verdade, a experiência humana só existe quando duas pessoas estão dispostas a trocar. Essa pessoa, inclusive, pode ser o próprio livro. Se você tem um bom livro, você está diante de um mundo todo. No primeiro capitulo do meu livro, falo disso. Todo homem tem essa necessidade, de ir e vir, de dialogar com o outro, não entendido somente como o outro que está diante de mim, mas é um outro que está dentro do livro. Daí eu concordar muito com o Humberto Eco, que diz isso muito bem. A leitura não vai acabar. Existirão outras formas. A Internet por exemplo. Agora, a interação é aquilo que faz o homem encontrar-se com a sua própria face. Eu só sei quem sou no olho do outro. O outro é o espelho para eu poder me reconhecer. Seria um trabalho de identificação e de identidade.

EducaBrasil – Diante dessa visão do prazer da leitura que se diferencia desses outros gostos, como poderíamos caracterizar o ensino hoje? Como essa escola trata as aulas de literatura?
Campos – A gente tem questões que estão na base. Há um sistema em que a formação do professor no curso de Letras acaba contemplando muito pouco a questão da leitura. Ainda, infelizmente, temos cursos que vão concentrar a sua atenção na norma. Então, a gramática ainda tem muito peso. Mas não acho que não deva ensinar gramática. Deve sim. Mas ela permeia a língua e a literatura. Ela parte exatamente dessa língua. Nós temos um problema já na formação dos professores. Um segundo problema é que professor de português não lê nem jornal. Eu diria que não são todos. Temos uma minoria que escolhe, no domingo, ler um romance. É muito freqüente ouvir os professores desconhecendo os poetas contemporâneos. E nós temos muitos autores contemporâneos, muitos e bons. Eles são publicados pelas grandes editoras.

EducaBrasil – Em alguns momentos de seu livro, há uma ênfase ao que o aluno sugere e pensa. Diante dessa constatação, como o educador poderia movimentar esse aluno?
Campos – Se você não considera o horizonte de expectativa, é complicado dialogar com uma pessoa que não te escuta. O aluno fica destituído dos seus valores, daquilo que ele traz. Mas ele é um falante de língua portuguesa. Não tem um domínio de norma culta, mas isso é outra coisa. Na vida dele, ele namora e vai ao cinema. Então, dizer que ele não sabe é não considerar o horizonte de expectativa. Essa é uma primeira questão. A outra é que não preciso propor a leitura de Paulo Coelho porque ele fará sozinho essa leitura. O que cabe à escola é despertar para questões que ele sozinho não poderia fazer. Então ele lerá sozinho Agatha Christie. Agora, ir com ele ao Dostoievski, aos franceses, ao Calvino (Ítalo Calvino), à Patrícia Melo, Saramago (José Saramago), exige que você vá junto. Eu ainda sublinharia que o aprendizado da leitura se faz permanentemente. Ler não é decifrar letras. Os meninos, depois da fase da alfabetização, parecem não precisar mais de aulas de leituras, que passam a ser feitas somente como uma tarefa em casa, e o menino que se vire sozinho. Em classe é sempre uma questão de correção, pois é muito freqüente o aluno dizer: “Não entendi nada de Dom Casmurro”. Mas se o professor diz: “Vamos ler juntos”, começa a leitura e é só ler com entonação. Aí o aluno diz: “Quando você lê eu entendo”. O que o aluno quer dizer? Quer dizer uma coisa seríssima, que a entonação é a compreensão de um gênero que eu não domino, que é o romance. Esse gênero precisa ser aprendido e eu aprendo quando leio. Eu recupero o estilo do autor, podendo reconstruir no imaginário dele aquilo que sozinho ele não faria.

EducaBrasil – Com relação às pesquisas quantitativas e qualitativas utilizadas no livro, qual importância delas para a compreensão desses problemas?
Campos – Essa foi uma questão que me deu algumas aberturas importantes. A pesquisa qualitativa me levou à estética da recepção. A quantitativa mostrou uma coisa que todo mundo diz: o jovem não lê. A pesquisa mostrou que o jovem lê bastante. Só não lê aquilo que a gente quer que ele leia. Então, a quantitativa foi trabalhosa porque eu pensava que teria dois ou três títulos; e tive mais de quatrocentos, diante da pergunta: que livro você gostou mais? Na quantitativa, se os alunos dizem que os professores dão história da literatura, você corre o risco de achar que eles estão falando de uma visão positivista. Mas quando você vai para a entrevista, percebe que não é a visão positivista. Eles (os professores) estão trabalhando o texto e outras marcas de teoria literária. Teve professor abordando a literatura com o cinema.

EducaBrasil – Nessas entrevistas teve algum depoimento que impressionou a senhora? Que trouxe algum dado novo?
Campos – Os alunos escreviam que as melhores aulas de literatura eram aquelas que o professor sabia e que estava apaixonado pelo que falava. Tive uma garota de 16 anos, do 2° colegial, que me impressionou muito. Ela dizia o seguinte: “Eu gosto muito de literatura e, nas últimas férias, fui para Belo Horizonte porque o professor ia dar 15 dias de curso sobre o Paul Valéry e eu fui fazer o curso”. Fiquei espantada. Ela admira quando ele (o professor) declama… quando ele fala… Eu acho que o professor precisa dar os olhos que têm para os alunos poderem ter olhos também.

EducaBrasil – E a pesquisa contemplou a família como complementar à escola para o ensino da leitura?
Campos – A quantitativa tinha algumas questões que falavam sobre isso. Essas questões mostram que pais e avós que lêem levam o aluno
a desenvolver a leitura. Há depoimentos de alunos que mostram pais que conversam sobre livros. Portanto, a interação está em pauta. Penso que a família tem um papel significativo, mas se não há um espaço para este tipo de movimento, é difícil esperar uma atividade (a leitura) que requer alguns quesitos. Um deles é a compra do livro, o objetivo. Uma coisa é o xerox; não tem a ver com o objeto. Ter o objeto que pode sublinhar é diferente do xerox, que no próximo verão vai jogar no lixo. Acho importante essa relação amorosa entre o leitor e o objetivo no qual ele lê.

EducaBrasil – Se pais leitores contribuem para filhos leitores, o inverso é verdadeiro?
Campos – Eu não acho que isso seja muito determinado. Existe sempre coisas que nos surpreendem, com gente diferente. Não da para dizer: pai que lê tem filho leitor; pai que não lê, filho não lê. Você tem valorizações, condições favoráveis, mas isso não define gostos. Na pesquisa, houve gente que disse: “Meus pais lêem, mais eu detesto” e outros: “meu pai nunca comprou um livro, mas eu gosto de tirar na biblioteca”.

EducaBrasil – Seu trabalho chegou a algumas certezas ou dúvidas que podem ser aproveitadas por outros pesquisadores, para dar continuidade?
Campos – A pesquisa teve uma contribuição que eu queria. A minha hipótese era que não podemos dizer que a escola não faz nada, que ninguém faz. Há pessoas e professores que são muito bons e desenvolvem trabalhos. Então não vamos dizer que está tudo falido porque aí a gente não constrói mais nada. Existe, sem dúvida, um trabalho efetivo de transformação ocorrendo. Uma segunda questão é: a leitura se ensina até a faculdade, até a pós-graduação. Leitura não é mande ler. Leitura é leia com. Ensine a ler. Dedique suas aulas a isso. Se você diz “Ah, mas isso é bater papo…”, então deixe de ser professor de literatura. A literatura começa na leitura do texto literário. E como eu cheguei a isso? Cheguei pelos estudos de teoria literária, junto com os estudos de teoria da aprendizagem, junto com uma filosofia da linguagem. Eu não posso ser só especialista em teoria literária. Eu tenho que entender que também tenho um adolescente na minha frente. Tenho que falar com um interlocutor real. Como alguém pode perceber o humor fino do Machado se a gente não ensina a ler as tiras que estão nos jornais de histórias em quadrinhos? Por que muitas vezes nossos alunos não conseguem achar graça no Dilbert? Eles não acham a menor graça das tiras das cobrinhas do Veríssimo. Pergunto então: se eu não ensino eles a entenderem a leitura do humor, como é que eu posso exigir que eles saltem para um texto que é sofisticado?

EducaBrasil – Daí, então, a importância da leitura do cotidiano?
Campos – Acho que não é possível falar em leitura de texto literário que não passe pela leitura do cotidiano.

EducaBrasil – Há mais alguma conclusão?
Campos – Acho que o livro deixa muitas questões. A que eu estou me dedicando no doutorado é, por exemplo, o que faz com que alguns períodos literários sejam tão valorizados e outros menos. Me dedico agora às questões relacionadas ao editor Monteiro Lobato, que a crítica, em algum momento, disse que ele não era muito importante. Ele é o nosso grande editor brasileiro. Ele entende que livro é para vender, que o povo precisa ler. Ele vai instaurar uma nova concepção de literatura, que é a questão da comercialização. A pesquisa me levou a procurar as brechas que a gente encontra no ensino de literatura. O professor Paulo Freire dizia que sempre há brechas e que a gente só pode descobri-las se estivermos mergulhados no processo. Acho que os professores de literatura são aqueles que vão encontrar as brechas, porque eles estão lá.

EducaBrasil – Para finalizar, por que optou pelas escolas do Grupo, que são particulares, e não pelas escolas públicas para colher dados para a pesquisa?
Campos – Nós temos pesquisas em escolas públicas. Há dados de escolas públicas. O que não tinha era dados de escola particular. Todo mundo diz que a particular é boa, então foi isso que eu fui ver. Fui conferir o que ela pode contribuir para a escola que não é boa.

COMO CITAR ESTE CONTEÚDO:
MENEZES, E. T. O texto literário e o papel do professor. EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 1999. Disponível em <https://educabrasil.com.br/o-texto-literario-e-o-papel-do-professor/>. Acesso em 19 mar. 2024.

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