Uma autonomia política pelas letras

O fracasso na alfabetização de jovens e adultos é por vezes atribuído ao próprio aluno ou até aos meios educacionais. Mesmo sendo uma visão preconceituosa, muito difundida nas décadas de 30 e 40, ainda hoje alguns professores trabalham com esse imaginário, combatido por educadores e psicólogos no início da década de 50. Estudos mais recentes consideram relevantes os fatores sociais e políticos na explicação do fracasso.

Um bom exemplo dessa visão e de sua transformação aconteceu na pequena prefeitura de Cosmópolis, no interior do Estado de São Paulo, que tinha um projeto político de integração dos moradores mais carentes da cidade a fim de permitir uma participação mais efetiva na vida cívica da comunidade. Em função desse amplo objetivo, o prefeito recentemente eleito, ligado ao PT (Partido dos Trabalhadores), visava adequar os cursos de alfabetização de jovens e adultos a esta proposta política de maior integração dos grupos marginalizados.

Para prestar uma assessoria acadêmica à prefeitura, professores e pesquisadores da UNICAMP, apoiados pelas agências CNPq e FAPESP, foram chamados em função do interesse nas questões de ensino da língua materna. Os trabalhos práticos e de pesquisas foram reunidos e sistematizados em 14 textos, editado pela Artmed com o título O ensino e a formação do professor: alfabetização de jovens e adultos.

O problema básico da cidade de Cosmópolis era o alto índice de evasão no curso supletivo de alfabetização de jovens e adultos que, em maio de 1991, estava acima de 50%, segundo a professora Angela B. Kleiman, titular no Departamento de Lingüística Aplicada da UNICAMP, uma das autoras do livro.

Diz Kleiman na introdução do livro: “O projeto político da Prefeitura de incorporação e participação dos grupos da periferia nas decisões governamentais de nível municipal propiciava, a nosso ver, as condições para se alfabetizarem jovens e adultos por meio de projetos de letramento, isto é, de projetos para o ensino da escrita por meio de práticas inseridas em situações significativas e relevantes do cotidiano. Essas propostas deveriam contribuir para a autonomia desses grupos periféricos”.

O projeto inicial, elaborado por docentes da UNICAMP, visava uma “intervenção crítica na realidade escolar mediante formação e assessoramento das professoras no desenvolvimento de projetos de letramento e um componente de pesquisa interpretativa de caráter participativo”. A escrita foi utilizada para dar sentido às situações cotidianas e de mercado, como na leitura de jornal, nos exames de concursos, na comunicação e manutenção das relações sociais por meio de cartas e bilhetes.

O projeto de letramento foi concebido como um conjunto de práticas sociais relacionadas ao uso, à função e ao impacto da escrita na sociedade. Ou seja, um conceito superior ao de alfabetização, que se limita, segundo Kleiman, como processo de aquisição do código da escrita e domínio individual desse código.

A obra com 14 textos foi organizada em quatro grandes partes. Na primeira, fala-se sobre o programa desenvolvido e seu contexto, enfatizando principalmente os aspectos relativos à função e ao significado da escrita. Angela Kleiman, que fez seu doutorado na University of Illinois (EUA), introduz a obra expondo as características gerais do programa com destaque para as reformulações exigidas das particularidades dos contextos institucionais envolvidos

A professora Inês Signorini, livre-docente pela UNICAMP e doutora pela Université Paul Valéry (França), examina em outro capítulo os modos de inserção dos indivíduos nas atividades socioculturais e econômicas da cidade. Na mesma linha, Maria Alice Descaderci, mestre em Lingüística Aplicada pela UNICAMP, fala sobre as práticas institucionais locais de seleção para o trabalho. Seu objetivo é identificar os estímulos à escolarização.

Na segunda parte do livro, o enfoque fica para o alfabetizando e seu desempenho. Inês Signorini e Raquel Maria Dias, licenciada em Letras, falam sobre a importância da natureza cognitiva, afetiva e motivacional, tanto para o sucesso quanto para o fracasso dos alunos que retornam à vida escolar. Sobre o processo de aquisição do código escrito, Fabíola Picoli faz uma análise de dados que refletiriam as hipóteses do adulto não-alfatebizado sobre a escrita alfabética.

Sobre as atividades de sala de aula, a terceira parte do livro faz uma abordagem na perspectiva das universitárias que participaram como observadoras e monitoras do programa. Merece destaque a pouca receptividade dos jovens e adultos nas atividades planejadas.

Carolina Roncaglia, licenciada em Letras pelo Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, estuda a relação entre gênero, expressividade e desenvoltura na redação do aluno a partir da análise de material produzido em sala de aula. Gláucia Pedersoli, também licenciada em Letras, analisa as dificuldades na reprodução de modelos textuais.

Simone Borges, mestre em Lingüística, olha para as contribuições da leitura de textos literários para uma visão mais crítica em confronto com a prática de leitura com textos informativos e não-literários. Denise Lino de Araújo, mestre em Lingüística, reflete sobre a própria prática de alfabetização de adultos pela discussão das diferenças entre as concepções de texto do alfabetizador e as dos alunos.

No último capítulo da terceira parte, quatro professoras alfabetizadoras da rede municipal de Cosmópolis, participantes do projeto, relatam em prosa narrativa e em verso os seus caminhos da formação profissional e de atuação nos cursos de alfabetização de jovens e adultos. A professora Denise Lopes arriscou os seguintes versos numa passagem em que fala do governador:

“(…) Construiu bela escola, pro aluno foi mostrar:
— Tem 50 salas …
— E o livro?
— Tem 30 banheiros …
— E o livro?
— Tem sala de espera, de entrada, de saída, de jantar …
— E o livro?
— Tem pátio, tem tudo …
— E o livro?
— Cala boca menino! O livro é secundário”

Na última parte do livro, discute-se a formação de professores segundo a perspectiva acadêmica, com textos de Angela Kleiman e Inês Signorini. São abordados a interação didática e o relato pessoal como instrumentos de reflexão e de transformação. Os dois últimos capítulos discutem as implicações da dimensão político-ideológica de todo o projeto de formação envolvendo grupos socioprofissionais diferentes.


Livro: O ensino e a formação do professor: alfabetização de jovens e adultos
Autor(es): Angela B. Kleiman, Inês Signorini e colaboradores
Editora: Artes Médicas Sul
Páginas: 280
COMO CITAR ESTE CONTEÚDO:
SANTOS, T. H. Uma autonomia política pelas letras. EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 2000. Disponível em <https://educabrasil.com.br/uma-autonomia-politica-pelas-letras/>. Acesso em 29 mar. 2024.

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